Um detalhe
Zélia Duncan
Em O Globo – 18/08/17
A lei muitas vezes parece
ter virado só conveniência e é aplicada de forma implacável, contra
principalmente pretos e pobres.
Semana dessas vi uma
parte do “Profissão repórter”, de que gosto muito, e já nos primeiros minutos
comecei a reparar numa coisa que é infelizmente bem fácil de se constatar. Um
programa sobre vítimas de violência nas emergências de hospitais públicos.
Muitos entrando já cobertos por um lençol, por onde, lá na ponta da maca, só se
viam os pés. Negros. Todos que vi entrando, com ou sem vida, sangrando,
chorando, assustados, calados, falantes. Todas as famílias esperando notícias,
todas as mães aflitas, todos eram brasileiros negros. Nosso país é racista
desde sempre, não posso e não quero me iludir. Fiquei impactada com aquelas
imagens e indignada por ninguém ressaltar a constatação óbvia. Ficou como se
fosse uma sinistra coincidência. Um detalhe? Sabemos que há uma violência
sistemática contra o jovem negro no Brasil. E, claro, uma violência
generalizada nos nossos dias. O bebê Arthur que o diga; encurralado por uma
bala perdida no ventre da mãe, não resiste e morre. Uma bala de fuzil. Perdida.
Mas, de cada cem, 71
vítimas são negras. Faltou dizerem isso, volto a repetir, pode parecer
aleatório, mas está enquadrado numa sinistra estatística de genocídio negro. Os
números correm na nossa frente, como evitar que cresçam dessa maneira? Quem foi
que deu licença pra esse absurdo? Acostumamos também com isso? Não deveríamos
nunca evitar esse assunto. Naturalizar a violência é concordar com ela todo
dia.
Vimos também o filho da
desembargadora Tânia Garcia, do Mato Grosso do Sul, sempre na mesma foto,
fortão, sorrisão, óculos escuros, no sol, flagrado com 120kg de cocaína, mais
um monte de munição. Até gravação de conversa grampeada pela polícia com
bandido de dentro da prisão, planejando fuga de chefe de tráfico, existe. Se
bem que conversa gravada não vale muita coisa no Brasil, todos sabemos disso.
Não é questão só de ter acontecido um crime, mas de como o meliante influente
vai se safar dele. Apesar de toda a exposição esfregada na cara de todos, o tal
Breno conseguiu, graças à mãe, ser transferido para um hospital psiquiátrico,
onde poderia tirar praticamente a mesma foto e não notaríamos diferença no
ambiente. E ainda desmoraliza as pessoas que por ventura possam ter problemas
psiquiátricos reais e que jamais cometeriam crimes por conta disso. Breno
Fernando Solo Braga é o nome desse sujeito de 37 anos, fichado antes por porte
ilegal de arma, tudo derrubado por dois habeas-corpus, alegando uma doença que
antes não teria sido mencionada. E assim vão os pesos e medidas da Justiça
brasileira. Nove gramas de cocaína, 0,6g de maconha e Rafael Braga, preto e
ex-morador de rua, foi condenado a 11 anos de reclusão. Habeas-corpus negado.
Rafael ficou conhecido por ter sido preso com uma garrafa de desinfetante, durante
protesto em julho de 2013. Ele foi o único condenado por supostos delitos
durante os atos. Manifestações aconteceram na esperança de chamar a atenção
para sua punição completamente desproporcional. De nada adiantou.
A lei muitas vezes parece
ter virado só conveniência e é aplicada de forma implacável, contra
principalmente pretos e pobres. Os outros, no máximo, esgotam as tornozeleiras
do mercado e depois caem no mundo, em geral levando consigo a maior parte dos
furtos cometidos.
Este ano uma professora
negra pediu a palavra na Flip e se tornou a voz do evento. Diva Guimarães, neta
de escravos, bem ali, com o microfone na mão. A vergonha da escravidão foi
ontem, e os efeitos dessa ferida estão longe de cicatrizar. Estão em nós todos,
em acharmos natural ver negros apinhando penitenciárias, ocupando subempregos,
habitando as ruas e os sinais. Temos muito que falar e ouvir, porque é um fato
vivo, cotidiano e nosso.
Lima Barreto, homenageado
na Flip, é uma voz a ser ouvida pra sempre e nos dias de hoje, um discurso que
pode ser ainda transformador e extremamente útil na decisão de sermos mais
críticos e brasileiros. Brasileiros no sentido de olharmos pra nós, pensarmos
em como chegamos até aqui. Lima era negro e nasceu pouco antes da abolição.
Herdou dos pais a certeza de que a liberdade está na educação.
A recente passeata nos
Estados Unidos mostra a face orgulhosa de nazistas e seus desdobramentos. Na
internet, rapidamente, os que por aqui se identificam com a boçalidade mostram
apoio, como se pudessem fazer parte daquilo. Como se latinos estivessem
convidados para o banquete da ignorância branca americana.
Mas tivemos um alento.
Maria do Rosário vence no processo contra Bolsonaro, isso, sim, uma vitória de
todas e todos que lutam por algo melhor, apesar de tanta contramão. Nem tudo
vai ficar sem consequência. Respiremos nessa brisa, que oxigênio virou coisa
muito rara.
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